CRÍTICA: “Contos Negreiros” é espetáculo obrigatório

13/03/2018 18:30:00


Por  Dâmaris Grün  - 5 de Março de 2018 - site https://aplausobrasil.com.br
 

RIO DE JANEIRO: "Não sou escravo de nenhum senhor/ Meu Paraíso é meu bastião/ Meu Tuiuti, o quilombo da favela/ É sentinela na libertação" (samba enredo da escola Paraíso do Tuiuti). Começo esse texto sobre o espetáculo Contos Negreiros do Brasil exortando os versos do samba enredo da escola de São Cristóvão, que sagrou-se vice campeã do carnaval usando a escravidão como temática central. Traço esse paralelo porque são dois grandes espetáculos que tratam sobre o povo negro e sua condição no Brasil.

A escola de São Cristóvão abriu seu desfile com uma encenação realista de como eram tratados os negros escravizados no Brasil. Açoites, correntes, tortura, dor. O realismo das fantasias, da atuação dos atores/foliões, da coreografia dessa comissão de frente nos emocionou e nos fez dizer "sim, é isso". Essa é a mesma sensação que temos quando começa Contos Negreiros do Brasil. Idealizado pelo sociólogo e filósofo Rodrigo França (que também está em cena), pelos atores Aline Borges, Milton Filho e pelo diretor Fernando Philbert, o espetáculo remete logo de cara ao recente desfile da Tuiuti. O sociólogo se dirige à plateia: "O Brasil é um país racista". É possível ouvirmos também aqui "sim, é isso". São dois prólogos impactantes, belos e que contém um discurso de urgência.

Em seguida, Rodrigo França faz um depoimento pessoal. Fala da sua origem, sua família, sua trajetória, sua condição de negro num país racista. A partir daí ele começa a apresentar estatísticas alarmantes. Essa aula é intercalada pela encenação dos 12 contos de Marcelino Freire em Contos Negreiros.

Os contos do autor pernambucano possuem uma estrutura narrativa com forte carga de oralidade, funcionando como monólogos de vozes que narram o sofrimento da condição do negro na sociedade. Essa carga dramática contida no texto proporciona uma relação direta entre o ator e o espectador, sendo esse último um interlocutor ativo dessa dor narrada, como se estivesse nele o sujeito confidente mas também agente da dor do personagem marginalizado. Esses monólogos fazem um jogo bastante dinâmico com o realismo dos dados, já que funcionam como uma espécie de ficcionalização dos mesmos. A composição dos personagens é mimética, muito bem delineada pelos atores, que materializam os corpos e gestos dos sujeitos contidos nos contos de Freire -como uma mulher negra marginalizada, o trabalhador braçal, a anciã, o homossexual – com bastante carga dramática.

O espetáculo segue essa lógica de aula, exposição didática, exposição documental em cena através de projeções de fotos dos artistas, de familiares, de ativistas da luta negra, de documentos pessoais caros aos artistas ali envolvidos.

No final, cada ator se dirige ao público e faz seu depoimento pessoal a partir de sua condição. Esse documento pessoal reitera e reverbera os dados de forma muito mais contundente, emocionante e real do que os próprios contos encenados. Nesse momento, o espetáculo ganha mais sentido porque a experiência dos atores repartida com o público possui uma dimensão afetiva e empírica que só os documentos vivos, os atores e suas histórias, podem nos dar. Não há nesse momento composição de personagens. Há atores sociais falando diretamente através de suas experiências.  Aqueles contos, aqueles dados, agora, no documento vivo dessas falas diretas, dos atores-sujeitos da ação ganham um tom trágico que coloca o espetáculo na urgência referida no título.

Não há muito o que escrever sobre esse espetáculo urgente e obrigatório. É preciso vê-lo, senti-lo, pensá-lo, digeri-lo, indicá-lo a todos. É política em cena. É resistência. É nossa obrigação falar sobre o tema.

"Hein seu branco safado
Ninguém aqui é escravo de ninguém"

(Canto primeiro, TRABALHADORES DO BRASIL, Contos Negreiros, de Marcelino Freire)

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